Conheça o homem que manobra navios na Lagoa dos Patos

Seu Paiva, aos 78 anos, o decano da praticagem na Lagoa dos Patos. Foto: Mateus Bruxel / Agencia RBS.

Seu Paiva, aos 78 anos, o deca­no da pra­ti­ca­gem na Lagoa dos Patos. Foto: Mateus Bruxel / Agencia RBS.

Poucos conhe­cem as hidro­vi­as que che­gam e par­tem de Porto Alegre tão bem quan­to Amaro Vasconcellos de Paiva. As qua­se cin­co déca­das de nave­ga­ção pelos 10 mil quilô­me­tros qua­dra­dos de super­fí­cie lhe con­fe­ri­ram a pre­ci­são de uma car­ta náu­ti­ca. Bancos de areia, mean­dros, pro­fun­di­da­des, peri­gos e rique­zas. Nenhum deta­lhe lhe esca­pa. Nestas águas, ele é Seu Paiva. Aos 78 anos, o deca­no da pra­ti­ca­gem na Lagoa dos Patos.

Sua fun­ção é con­tro­lar os rumos de embar­ca­ções que se aven­tu­ram pela lagu­na. Como os coman­dan­tes de navi­os estran­gei­ros que ali che­gam nada conhe­cem da geo­gra­fia local, é Paiva — e os outros sete prá­ti­cos da Associação de Praticagem da Lagoa dos Patos, fun­da­da em 1º de maio de 1935 — quem acon­se­lha a auto­ri­da­de máxi­ma da embar­ca­ção e dá as coor­de­na­das ao timoneiro.

— O prá­ti­co pre­ci­sa ser “safa-onça”, saber os cami­nhos, conhe­cer os canais. O coman­dan­te estran­gei­ro não conhe­ce as hidro­vi­as da região. A fun­ção do prá­ti­co, então, é guiá-lo por águas des­co­nhe­ci­das — expli­ca o navegador.

E essa era a mis­são a ser cum­pri­da, na quin­ta-fei­ra, dia 23 de abril, quan­do embar­cou em um rebo­ca­dor, no Cais do Porto, em Porto Alegre, rumo ao Terminal Santa Clara, em Triunfo. Nesta pon­ta do Rio Jacuí, loca­li­za­da ao lado do polo petroquí­mi­co da Braskem, esta­va um navio com ban­dei­ra de Cingapura.

Carregado com 1,9 mil tone­la­das de buta­di­e­no (gás cuja prin­ci­pal apli­ca­ção está na pro­du­ção de bor­ra­chas sin­té­ti­cas), ele aguar­da­va a ori­en­ta­ção de Paiva para ser desa­tra­ca­do dali e anco­ra­do em uma área de fun­deio a cin­co quilô­me­tros do ter­mi­nal — local de onde, dias depois, ini­ci­a­ria sua nave­ga­ção rumo a Rio Grande.

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Às 11h30min, uma hora após saí­rem da Capital a bor­do do rebo­ca­dor Pedro Marques, Paiva e mais três nave­ga­do­res (o coman­dan­te, o ofi­ci­al de máqui­nas e o mari­nhei­ro) encos­ta­ram a peque­na embar­ca­ção ao lado do cos­ta­do do navio estran­gei­ro. De cole­te sal­va-vidas, luvas iso­lan­tes e cal­ça­dos anti­der­ra­pan­tes, o vete­ra­no dos prá­ti­cos enfren­tou a esca­da de que­bra-pei­to, sem sina­li­zar qual­quer can­sa­ço por­ven­tu­ra impos­to pela idade.

Seis metros aci­ma, reti­rou as luvas e, em inglês, cum­pri­men­tou o timo­nei­ro e par­te da tri­pu­la­ção que o aguar­da­va. Por eles, foi con­du­zi­do, então, até a pon­te de coman­do, de onde orde­na­ria os movi­men­tos da embarcação.

— Good after­no­on, cap­tain! (Boa tar­de, capi­tão!) — sau­dou Paiva o capi­tão fili­pi­no Alex Reyes, que o espe­ra­va à por­ta da cabine.

Sem dei­xar a for­ma­li­da­de de lado, Paiva foi logo puxan­do o api­to e o rádio VHF, com o qual se comu­ni­ca­ria com o rebo­ca­dor que o havia con­du­zi­do até ali e outro, o Cardiff, que já esta­va no ter­mi­nal. Deixou bol­sa e cole­te sal­va-vidas de lado e, do lado de fora do navio, deu iní­cio às pri­mei­ras ordens com o estri­den­te sinal do apito.

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Os fun­ci­o­ná­ri­os do píer II deve­ri­am, naque­le momen­to, sol­tar aos pou­cos os cabos (é feio cha­má-los de cor­das), dan­do iní­cio à desa­tra­ca­ção. De vol­ta à sala do coman­do, de olho pela vigia (não é edu­ca­do com­pa­rá-la com uma jane­la), puxou o rádio e se comu­ni­cou com os rebocadores:

— Abrindo a proa, Pedro Marques. Cardiff, parado.

O navio se des­lo­cou tran­qui­la­men­te, miran­do o cen­tro do canal. Quando con­fir­mou que a dis­tân­cia da embar­ca­ção era a mes­ma em rela­ção às duas mar­gens, Paiva suge­riu ao comandante:

— Let´s go ahe­ad, cap­tain? (Vamos em frente?).

E con­ta­tou nova­men­te os rebocadores.

— Pedro Marques, escu­tan­do bem?

— Oi, seu Paiva. Escutando bem.

— Vamos largando.

À fren­te, esta­va uma hora de via­gem em linha reta pelos cin­co quilô­me­tros do canal.
A velo­ci­da­de foi indi­ca­da ao coman­dan­te e impres­sa ao navio pelo timoneiro.

— Agora é como a vida: deva­gar e sem­pre, res­pei­tan­do a natu­re­za — ana­li­sou o homem que se orgu­lha de ter enca­lha­do ape­nas qua­tro vezes nos tan­tos anos de profissão.

Com par­te da mis­são já rea­li­za­da, Paiva cha­mou o 1º ofi­ci­al e pediu um café. Da inse­pa­rá­vel bol­sa de cou­ro já gas­to, o prá­ti­co tirou um cader­no de capa dura — um das deze­nas de diá­ri­os de bor­do que guar­da. Tirou uma cane­ta azul, a cor dos dias de sema­na (no sába­do, é ver­de; no domin­go, ver­me­lho), e pas­sou a ano­tar deta­lhes da tare­fa que cum­pria: nome da embar­ca­ção, horá­ri­os, lati­tu­de, longitude.

Fosse mais tar­de, dedi­ca­ria-se ain­da ao pôr do sol. E ao lado do “astro mai­or”, dese­nha­dos com olhos e nariz, acres­cen­ta­ria notas úteis ao dia seguin­te. Fazem par­te de seu tra­ba­lho bre­ves pita­cos na meteorologia.

— Tem de estar de olho no barô­me­tro, no termô­me­tro, no ven­to e nos fenô­me­nos cli­má­ti­cos. Nestes meses que seguem, por exem­plo, tem mui­to nevo­ei­ro. E como diz o velho mari­nhei­ro, quan­do vem o nevo­ei­ro, toca o bar­co deva­gar — poetizou.

O velho mari­nhei­ro hoje é ele. Parrucho, como se defi­ne (uma mis­tu­ra entre sua ori­gem para­en­se com gaú­cho), ini­ci­ou a vida de nave­ga­dor na Escola Mercante do Estado do Pará. Após três anos de aulas, embar­cou por qua­se uma déca­da como mem­bro da Frota Nacional dos Petroleiros. Percorreu a cos­ta bra­si­lei­ra, o Mar do Caribe e parou no Rio Grande do Sul “a man­do do des­ti­no”. Amparado pelas memó­ri­as, tem a con­vic­ção de que ain­da não é hora de parar:

— Não pre­ten­do parar tão cedo. Vou ficar fazen­do o quê? Ficar joga­do no sofá? Estou enxer­gan­do bem e até faço ginástica.

Na últi­ma quin­ta-fei­ra, Paiva aju­dou a desa­tra­car do Terminal Santa Clara, em Triunfo, e anco­rar em uma área de fun­deio um navio com ban­dei­ra de Cingapura

Se filho de prá­ti­co, prá­ti­co fos­se, os três filhos de Paiva teri­am de ter nível supe­ri­or em qual­quer área, habi­li­ta­ção de mes­tre-ama­dor, conhe­ci­men­tos de inglês e, a par­tir do pro­ces­so sele­ti­vo da Marinha do Brasil, con­quis­tar uma vaga no cur­so de “pra­ti­can­te de prá­ti­co”. Com cer­ti­fi­ca­do em mãos, então prá­ti­cos, tra­ba­lha­ri­am como pro­fis­si­o­nais libe­rais e ganha­ri­am algo em tor­no de R$ 20 mil men­sais, caso atu­as­sem na Lagos dos Patos (em alguns locais do país, como no Maranhão, o valor pode pas­sar dos R$ 100 mil por mês, mas a média no Brasil é de R$ 30 mil).

O trio não quis seguir os cami­nhos do pai, mas tam­pou­co o pri­vou de orgu­lho. A filha, Iara (senho­ra das águas, em tupi), for­mou-se em Direito e, no tra­ba­lho de con­clu­são, ana­li­sou o direi­to marí­ti­mo, a pra­ti­ca­gem e a pro­te­ção ambiental.

Quando se com­ple­ta­va qua­se uma hora de via­gem des­de o píer até a área onde o navio fica­ria anco­ra­do, Paiva indi­cou o local exa­to de fun­deio, pre­en­cheu pro­to­co­los e se des­pe­diu do coman­dan­te e da tri­pu­la­ção. Pela mes­ma esca­da, fez o cami­nho inver­so e aces­sou o Pedro Marques, que o aguardava.

As vol­tas à Capital já não são como antes. Do alto do rebo­ca­dor, quan­do avis­tou o Cais do Porto de onde pou­cos o veem, Paiva lem­brou-se do movi­men­to e da vida que o local tinha no iní­cio de sua carreira:

— Ainda tem um por­to, mas já não é tão ale­gre. Nosso pro­ble­ma aqui é o cala­do, que não acei­ta mais os navi­os dimen­si­o­na­dos de hoje, mais altos e lar­gos. E aí é assim: se tem navio, tem tra­ba­lho. Se não tem, fico, eu, a ver navios.

Sua roti­na pode ter resol­vi­do se acal­mar, mas ain­da são cer­ca de três via­gens por sema­na. As mais lon­gas, até Rio Grande, o dei­xam lon­ge de casa por mais de um dia. Está tudo ali, no diá­rio de bor­do, que rece­be então, qua­se em Porto Alegre, os últi­mos regis­tros do nave­ga­dor. Devolveu o cader­no à bol­sa e des­pe­diu-se dos tri­pu­lan­tes do rebocador.

Depois de cin­co horas, esta­va de novo em ter­ra fir­me. Sem pres­sa, Paiva entrou no car­ro. Ajustou o cin­to e a mar­cha a ré. E enquan­to fazia mais uma das tan­tas mano­bras daque­le dia, foi, uma últi­ma vez, questionado:

— Seu Paiva, o que é mais difí­cil? Pilotar um navio ou um carro?

O nave­ga­dor não respondeu.

— Seu Paiva, seu Paiva, tem um car­ro, seu Paiva, o car­ro… — ten­tou aler­tar a repórter.

A leve, porém estron­do­sa, encos­ta­di­nha no veí­cu­lo para­do pou­cos metros atrás res­pon­deu por ele. De um jei­to, tam­bém, bem prático.

Por Bruna Scirea.

Reportagem da série “Trabalho para Poucos” (link » cli­que p/ acessar).